Os consagrados programas humorísticos das décadas de 80 e 90 eternizaram grandes bordões como “E o salário, ó!”, de Chico Anísio na pele do Professor Raimundo; “Nojento, Tchã!” de Tião Macalé dos Trapalhões” e “Ô Cride, fala pra mãe…!” de Ronald Golias na Praça é Nossa.
A construção civil tem seus bordões, aquelas frases repetidas por alguém sempre em uma determinada situação. Tenho certeza de que você, colega da construção civil já ouviu pelo menos um desses dois bordões famosos sobre edifícios sustentáveis que sempre aparecem nas reuniões:
1. “O mercado consumidor não valoriza sustentabilidade. Ninguém quer pagar a mais por isso”
2. “Custa caro, a conta não fecha”
Você é arquiteto(a), engenheiro(a), profissional de incorporação e construção. No seu dia-a-dia nas trincheiras do mercado você defende a sustentabilidade em seus projetos, apresenta conceitos, referências, tendências relacionadas à sustentabilidade. Mas na hora de vender a ideia, você é questionado por não possuir dados concretos sobre o impacto que isso causaria nas finanças da empresa.
E a falta de apresentação desses dados vem quase sempre acompanhada de alguém na sala (ou mais atualmente, no Zoom) verbalizando um desses dois bordões (quando não os dois). Isso é bastante latente no mercado de incorporação, aquele que desenvolve imóveis residenciais ou corporativos especulativos, ou seja, destinados à venda.
No mercado de incorporação especulativa, a insistência nesses dois bordões está geralmente relacionada ao fato de que será o cliente final quem colherá os frutos financeiros da sustentabilidade, e não o incorporador. Se quem vai economizar na conta de energia e água é o ocupante, qual seria o sentido disso para os negócios do incorporador?
Eu questiono sempre esse pensamento. Não seria excelente para os negócios se uma empresa oferecesse um produto imobiliário que, por conta de estratégias sustentáveis, economizasse o dinheiro dos moradores durante décadas, ou pela vida toda? Será que isso não contribuiria brutalmente na construção de uma marca (branding) e na fidelização de clientes?
O crescimento substancial de empreendimentos com certificação EDGE (Excelence in Design for Greater Efficiencies) na América Latina, com destaque para Colômbia é exemplo disso. A Colômbia possui um mecanismo de âmbito nacional que fornece desconto no imposto predial local para edifícios sustentáveis. A certificação EDGE por atestar essa condição, torna esses empreendimentos elegíveis à essa condição. A isenção no imposto predial beneficia diretamente o morador, e não o incorporador. Isso sem contabilizar a economia nas contas de energia e água decorrentes das estratégias e sistemas presentes nos edifícios.
Não tenho dúvidas que já estamos vivendo em um tempo em que o mercado começa a questionar esses bordões. Mas esses mesmos bordões, de tanto serem repetidos, viraram mitos, que dificultam o avanço acelerado de nosso mercado em direção à sustentabilidade.
Proponho então aqui uma reflexão que questiona esses mitos. Vamos lá.
MITO 1: “O mercado consumidor não valoriza sustentabilidade. Ninguém quer pagar a mais por isso”
Eu ouço isso há pelo menos 10 anos de muitos incorporadores. Mas recentemente alguns dos meus clientes me relataram que o item “sustentabilidade” já aparece nas pesquisas de preferência do mercado consumidor.
Um cliente da Ca2, um incorporador novo de Cuiabá que está concebendo seu primeiro empreendimento residencial, me relatou que o item “sustentabilidade” só ficou atrás de “localização” e “varanda” nos fatores de decisão de compra nas pesquisas de mercado.
A Geração Y, ou os Millenials, que têm hoje entre 25 e 40 anos, e representam uma parcela importante do mercado, já estão mais atentos às questões de sustentabilidade.
Uma pesquisa da Nielsen de 2018 revelou que há uma lacuna enorme entre gerações em se tratando de potencial de compra de produtos sustentáveis. Os Millenials são duas vezes mais propensos do que os Baby Boomers (seus pais), a mudarem seus hábitos para reduzir seu impacto ambiental (75% vs. 34%). Eles também são mais propensos a pagar a mais por produtos contendo componentes ou ingredientes mais sustentáveis ou de baixo impacto ambiental (90% vs. 61%), ou produtos que praticam responsabilidade social (80% vs. 48%).
O próximo mercado consumidor, a Geração Z, formada hoje por pessoas com idade entre 14 e 24 anos, tende a ser ainda mais exigentes ainda em se tratando de práticas sustentáveis.
Ainda que o conceito de sustentabilidade como importante atributo de compra já esteja aparecendo em algumas pesquisas de mercado, isso ainda não ocorre de forma maciça.
Geralmente as pesquisas de mercado te perguntam “Dentre os atributos abaixo, enumere de 1 à 10 quais são os mais relevantes em sua decisão de compra”. E “Sustentabilidade” muitas vezes aparece ali escondida entre o “Preço”, a “Localização” e a “varanda gourmet”, que costumam dividir o pódio.
Se fizéssemos a seguinte pergunta a um comprador de carro: “Você pagaria a mais por um veículo mais sustentável?”. O termo “sustentabilidade” é vago, e vem carregada de clichês. A maioria provavelmente diria que não. Mas e se perguntarmos: “Você pagaria a mais por um veículo com melhor eficiência de combustível?”. Nesse caso revela-se o benefício tangível do bem. E de fato, a eficiência de combustível é um fator fortemente relevante na decisão de compra de um automóvel.
Por que com um imóvel deve ser diferente?
Deveria inclusive ser ainda mais valorizado. Um imóvel residencial, por exemplo, na maioria das vezes é um bem que você adquire uma vez na vida, se muito, duas. O carro muita gente troca todo ano.
Tenho curiosidade em saber se as pesquisas de mercado têm perguntado algo como “Você pagaria a mais se o retorno no investimento viesse em X anos?”, ou “se o retorno no investimento fosse de Y % em razão da economia operacional”?
Será mesmo que não existe um mercado consumidor que pagaria a mais em um imóvel com desempenho ambiental superior, se ele conhecesse o custo benefício de sua compra? E se o cliente soubesse quanto irá economizar no longo prazo e em quanto tempo seu investimento será amortizado? Eu acredito que esse mercado exista e está clamando por informações confiáveis.
É justamente esse argumento, o do custo benefício, do payback, que a indústria da construção civil ainda não tem, ou pelo menos não tem segurança em passar.
Imagine se pudéssemos dizer quanto de energia e água o cliente vai economizar por ano comprando o seu produto e não o do concorrente. E se pudéssemos classificar o imóvel pelo seu desempenho energético, como o selo Procel de eletrodomésticos.
Caso você não saiba, os edifícios também têm seu próprio selo Procel hoje chamado de PBE-Edifica (Programa Brasileiro de Etiquetagem).
O PBE-Edifica usa aquele mesmo sistema de cores e classificação por letras que trazem as televisões, ar-condicionados e geladeiras. É uma forma simples e visualmente reconhecível de se comunicar o desempenho energético de um imóvel. Em muitos países da Europa, e na Austrália, onde vivi e trabalhei entre 2006 e 2012, a aplicação de um sistema de etiquetagem de classificação energética é obrigatório no caso de venda ou aluguel de imóveis.
O PBE-Edifica é um sistema bastante robusto tecnicamente e teve um início de adesão no mercado a alguns anos atrás, mas de fato ainda “decolou”. Por sua qualidade técnica e fácil compreensão pelo mercado consumidor, creio que iremos seguir a tendência de outros países e adotar o PBE-Edifica como um padrão de mercado em alguns poucos anos.
E se não for ele, será algum outro indicativo de desempenho. Esse é o caminho natural que o mercado deverá seguir.
Voltando ao mito “O mercado consumidor não valoriza sustentabilidade. Ninguém quer pagar a mais por isso”
Ora, se o mercado consumidor não quer pagar a mais por sustentabilidade, porque será então que já existe um movimento, ainda que lento, do mercado brasileiro na concepção de empreendimentos mais sustentáveis?
Existem hoje diversas incorporadoras certificando seus empreendimentos. Originalmente os corporativos com LEED, porém mais recentemente vimos um crescimento importante na busca pela certificação dos residenciais com AQUA, EDGE, GBC Condomínio, e Fitwel (com a diferença de ser essa uma certificação de saúde e bem-estar). Alguns incorporadores que não desejam certificar estão buscando desenvolver seus próprios manuais de sustentabilidade. Outros buscam contratar consultores em conforto ambiental, eficiência energética e sustentabilidade para seus empreendimentos, ainda que não certifiquem.
Esse movimento realmente existe. O crescimento da Ca2 dos últimos 5 anos e o surgimento de novas empresas e profissionais que oferecem esses serviços são provas disso.
Quando se pensa em mercado consumidor de produtos imobiliários, tendemos a pensar no casal recém-casado, ou na empresa que necessita de um espaço comercial. Mas existe um outro tipo de cliente. São os Fundos imobiliários e grandes investidores. E é aí é que a sustentabilidade fala mais alto.
Hoje as empresas relevantes no mundo todo observam um modelo de Governança chamado ESG (Environmental, social and corporate governance).
Trata-se de um Framework, ou uma metodologia que avalia como as práticas sustentáveis e éticas de uma empresa impactam em sua performance financeira. Ele permite que investidores avaliem melhor os riscos e o retorno dos negócios com base em suas práticas sustentáveis.
A preservação do bem estar social e do meio ambiente se tornaram fatores não financeiros usados por investidores como parte de sua análise de riscos e oportunidades ao investir em uma empresa. A sustentabilidade passou a ser um dos fatores de decisão em investimentos.
O ESG vem ganhando cada vez mais reconhecimento entre investidores no mundo todo e em diversas áreas devido à grandes movimentos governamentais de proteção ambiental e social, e devido a um apelo e conscientização popular sobre a responsabilidade ambiental que as empresas devem assumir e o impacto social que elas causam.
A maioria das principais empresas de capital aberto no mundo publicam periodicamente os resultados de suas iniciativas relacionadas ao ESG.
Alguns fundos de investimento internacionais atuantes no país já cobram de seus parceiros incorporadores locais práticas comprovadamente sustentáveis. Em alguns casos exigem que os empreendimentos em que investem sejam inclusive certificados. Dentre as empresas de incorporação de capital aberto no país, algumas já estão se mobilizando para introduzir a sustentabilidade em seus projetos, visando melhores resultados na avaliação de seu ESG.
Então o mito do “mercado não valoriza” começa a cair.
Talvez aquele casal recém-casado não valorize a sustentabilidade, e provavelmente não pagariam a mais por isso, pois estão economizando para o enxoval do bebê que está por vir. Mas essa é uma forma caseira e pequena de olhar o mercado.
O movimento pela sustentabilidade na construção civil já começou e quem não está se preocupando hoje em se adaptar vai se encontrar estrategicamente e financeiramente enfraquecida no futuro.
Passemos agora ao segundo mito:
MITO 2: “Custa mais caro, a conta não fecha”
Sabemos que o dinheiro é limitado e os empreendimentos feitos para o mercado precisam ter sua margem de lucro, como qualquer produto ou serviço. Ninguém pratica sustentabilidade se o negócio der prejuízo. Temos que reconhecer que se “a conta não fecha”, o empreendimento não sai do papel.
Mas me pergunto: será que a conta está mesmo sendo feita? E bem feita? Quantas incorporadoras sabem realmente quanto custa inserir conceitos sustentáveis em seus empreendimentos?
É estranho pensar que simplesmente “a conta não fecha” quando existem exemplos de projetos certificados até no padrão Minha Casa Minha Vida.
Lançado em 2018, o empreendimento Pinhais Park Residence (abaixo)), na região metropolitana de Curitiba foi o primeiro condomínio popular do Minha Casa Minha Vida do país a receber a certificação GBC Condomínio nível Ouro, que atesta que o projeto e a obra foram realizados em conformidade com premissas de sustentabilidade. O empreendimento de três torres residenciais adotou práticas sustentáveis em todas as etapas desde a concepção do projeto, passando pela execução do canteiro de obras e materiais empregados.
Condomínio Pinhais Park Residence, Paraná. Certificado GBC Condomínio nível Ouro. Imagem: Paranashop
Antonio Lage, CEO da Valor Real Empreendimentos, responsável pelo empreendimento relata ao site do GBC Brasil:
“A certificação GBC Condomínio foi um grande desafio e aprendizado. Nosso objetivo neste processo era aplicar o conceito de sustentabilidade, usualmente visto apenas em empreendimentos de alto padrão, em um empreendimento residencial popular desenvolvido no âmbito do Minha Casa Minha Vida e, com isso, agregar valor aos moradores entregando um condomínio mais eficiente no uso dos recursos naturais e com tecnologias inovadoras de construção”.
Entre os destaques sustentáveis do projeto do Pinhais Park estão: equipamentos hidrossanitários de baixo consumo e aproveitamento de águas pluviais para limpeza; paisagismo com espécies nativas contribuindo para a diminuição na necessidade de irrigação; sistemas de iluminação eficiente e automatizados; reciclagem dos resíduos gerados e materiais utilizados na obra; desempenho térmico e acústico superiores; entre outros.
Empreendimentos residenciais e corporativos de diversos padrões já buscam certificações ambientais de terceira parte, procurando demonstrar à sociedade e investidores seu compromisso com a sustentabilidade. No caso dos corporativos, a certificação LEED, originalmente restrita apenas aos edifícios maiores e de padrão Triple A, agora começa também a ser aplicada aos empreendimentos menores.
No caso dos residenciais, o movimento ainda está no início. O AQUA aparece mais frequentemente nos empreendimentos já certificados, por ter sido a primeira certificação nacional opara residenciais no país. Mas hoje observamos indícios de crescimento de outras ferramentas como o GBC Condomínio e a certificação internacional EDGE (Excelence in Design for Greater Efficiencies), que foi justamente criada para fomentar a construção sustentável em países em desenvolvimento.
(Conheça mais sobre o EDGE nesse e-book gratuito produzido pela Ca2 e nesse vídeo: )
Um forte indício de que “a conta fecha” é o crescimento substancial de empreendimentos com certificação EDGE em países em desenvolvimento, incluindo forte presença na América Latina, com destaque para a Colômbia. Mas vemos exemplos de diversos padrões de empreendimentos certificados, inclusive os destinados à baixa renda, por exemplo no Equador, Peru, México, Argentina, África do Sul, Indonésia, Nigéria, Vietnam, India, entre outros.
Apresento a seguir alguns exemplos de projetos residenciais destinados à baixa renda em países em desenvolvimento onde a conta “fechou”.
Condomínio Bosque da Serra em Taboão da Serra, SP- Brasil.
Griya LiMa Garuda Subang, Indoésia
RPP Developments, África do Sul
Diversos outros exemplos de empreendimentos de tipologias, padrões e usos variados que foram projetados e construídos de acordo com requisitos de sustentabilidade podem ser encontrados no site do EDGE.
Sendo assim, existem indícios fortes contrários à crença de que “a conta não fecha”. Talvez a conta não esteja nem sendo feita.
Aqueles que já observam as práticas de ESG e buscam fazer a conta certa estão demonstrando que empreendimentos sustentáveis podem ser economicamente viáveis e que não necessariamente o preço final do imóvel será proibitivo ao mercado consumidor.
O que observamos hoje no mercado é definitivamente um movimento crescente que desafia esses dois grandes bordões, que viraram mitos. Importantes incorporadores no Brasil já praticam e buscam aprimorar suas práticas a cada dia. E se estão fazendo não creio que seja por amor à natureza, mas porque existe pressão por negócios mais sustentáveis por parte de investidores e clientes.
E tudo bem que seja assim, por enquanto. O que importa é o resultado final, até que criemos um consciente coletivo no mercado da construção civil que observe a sustentabilidade com o olhar que ela requer.
Se tudo isso fez sentido a você, talvez você se interesse por um programa de aprendizado sobre construções sustentáveis que estou lançando juntamente com a Construlearning.
“Design Sprint de um Edifício Sustentável: As 4 Etapas da Teoria à Prototipação” (detalhes aqui)
Trata-se de uma jornada de aprendizado na qual ao final, você terá projetado e prototipado um edifício sustentável, capaz de consumir menos energia e menos água, com custo benefício e período de payback conhecidos e controlados por você. Você vai poder avaliar em tempo real enquanto projeta, o impacto ambiental que cada estratégia sustentável proporciona, além de seu custo capital, e período de retorno;
Assim você vai poder tomar decisões com base em critérios ambientais, mas dentro de um contexto real de mercado, e com orçamento controlado, compreendendo quais são as estratégias que apresentam o melhor custo benefício.
Você poderá por si próprio(a), baseado em argumentos técnicos, de uma vez por todas, desafiar os mitos sobre construções sustentáveis.
E pra você que se interessa pelo assunto, não deixe de conferir meu canal no youtube sobre construções sustentáveis e conforto ambiental na arquitetura
Fonte Imagem Destaque: Gustavo Capanema, ícone do modernismo mundial. Foto: Oscar Liberal / Iphan
Autor: Marcelo Nudel
Sobre o Autor: Marcelo Nudel, diretor geral da Ca2 é arquiteto formado pela Universidade Mackenzie e pós graduado em Sustainable Architectural Science pela Universidade de Sydney, Austrália. Esteve envolvido em projetos multidisciplinares de edifícios que integram estratégias térmicas passivas, luz natural e desempenho energético em países como Austrália, Espanha, Estados Unidos e Brasil. Lecionou nos cursos de graduação e pós em arquitetura e urbanismo na Escola da Cidade e Universidade Mackenzie. Marcelo Nudel possui acreditação como EDGE Expert, qualificando-o para atuar como consultor para certificação EDGE para greenbuildings.